Toda fuga encerra uma busca

 

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Há alguns anos, comprei num sebo em Porto Alegre um livro intitulado “Dá pra ir embora?” e, como é típico de minha pessoa, o coloquei na prateleira dos inúmeros livros que um dia serão lidos e nunca mais o tirei de lá.

Ao faxinar meu quarto, voltei a pegá-lo nas mãos e na sua primeira página o subtítulo me atraía como um imã: uma visão psicossomática das fugas, a depressão nos corpos. As linhas que seguiam foram tapas na cara de uma crítica tão aguçada que foi capaz de me deixar reflexiva por dias. Não consegui utilizar minha corriqueira desculpa de falta de tempo, pois o livro é pequeno e de rápida leitura, perfeitamente apreciável em dois ou três trajetos de ônibus até o trabalho. Não consegui fugir!

Pra começo de conversa, o livro foi escrito por um endocrinologista e psicanalista, que atende pelo nome de Ricardo Maximiliano Pelosi e traduziu muito do momento que vivo de redescoberta do corpo e do conceito de beleza, sendo que ambos passam muito mais pela cabeça e histórico que nos são particulares do que pela bula de remédios milagrosos. Entre as questões abordadas pelo autor, chama atenção a defesa de que obesidade é sintoma e não doença. Sintoma que assim como tantos outros reflete o tempo que vivemos, de ansiedade, de perversas escolhas, de relações que assumem novas configurações e de uma pressão contínua por estar sempre bem. Sintomas aos quais sucumbimos todos os dias em mecanismos de fuga que Pelosi ilustra com maestria por meio dos casos clínicos que nos conta e com os quais é impossível não ter uma pontinha de identificação. Sintomas que, segundo o próprio autor, precisam ter suas causas estudadas, pois tratar sintoma sem entender a causa é “no mínimo falácia e no máximo charlatanismo”.

Separei abaixo alguns trechos, cuja minha identificação foi instantânea (aquele sentimento de “gostaria de ter os escrito isso”).  Espero que sejam suficientes para deixá-los com o desejo desta leitura ❤

Inquestionável avanço das comunicações e do desenvolvimento humano, a Internet em seus chats de múltiplas relações permitiu aos homens a incrível façanha de, ao mesmo tempo, fugir e esconder-se em seus quartos inexpugnáveis, experimentarem  a fantástica emoção da onipotência: posso ser, atrás desta tela, qualquer coisa. Uma grande fuga utópica e ucrônica. Um autismo epidêmico. (p.37)

A cabeça nos salva e nos mata, é preciso escolher o uso que faremos dela! É uma frase de efeito, ótima para conferências. Falsa. Dá idéia de simplicidade a algo muito complexo. Escolhas desta ordem demandam profundos esforços elaborativos, conquistados com a sabedoria dos tempos e com análises bem sucedidas. (p. 79)

Os sintomas são transformações concretas de conteúdos abstratos – emoções, sentimentos, traumas etc. – que transbordam do continente emocional. (p. 90)

O palco ainda é o auditório da empresa, o pátio da fábrica, a coluna social, mas… sentimentos não cabem lá. Algo tem que pagar o alto preço deste banimento emocional. O corpo é a vítima desta conta. (p.95)

 

PS: O livro é barato, logo, não fujam para a explicação dinheiro. O livro é pequeno, logo, não fujam para a falta de tempo. O livro é gostoso de ler, não fujam para a falta de apreço pela leitura. O livro tem fundamentação e teoria, não fujam para o desgosto por auto-ajuda.

 


Sobre Ela

Há alguns anos, assisti um dos filmes mais sensíveis que já vi. Onde vivem os monstros fala de relações familiares, aquele tema que todas entre todas as pessoas que amam já se pegaram refletindo na calada da noite. E o mais sensacional é a possibilidade de escolher a leitura: olhar para os monstros que habitam nossas mais íntimas [e escondidas] relações ou ver o filme como a bela obra de ficção que é.

Quando soube que Spike Jonke, o diretor, faria Ela, não tive dúvidas de que seria uma porrada.

Ela. Um belo começo para muitos nomes, na maioria adjetivos, que viriam. Lindo, sensível, atordoante, emocionante, Ela fala de solidão e desta dificuldade da conexão, da intimidade.

A metáfora de um relacionamento com um Sistema Operacional deixa espaço para pensar a nossa própria solidão ou, no caso de pessoas mais imaginativas como eu, a capacidade de criar fantasias para preencher os espaços vazios que nos latejam. Eu tive minha própria Samantha e, pasmem vocês, esta paixão nem precisou de inteligência artificial.

Estar com alguém que se ama é algo apaziguador, mesmo que apenas você esteja lá. Olhar para o lado e não dar a mão, não beijar, não se lambuzar com o chantilly do café, mas estar é apaziguador. Ocupa a sua lacuna, não a do outro. É algo como ter para quem contar, o que é muito diferente do que ter com quem contar.

Saí do cinema tonta, pensando no porquê de tantos sistemas operacionais já terem se instalado em meu coração, de tanta imaginação para preencher a carência de intimidade, de tanta projeção em pessoas que não estão de fato ali.  Caiu uma lagrima, secada às pressas, ao não conseguir entender o motivo profundo de cedermos espaços a quem não pode estar.

Theodore, eu te entendo: é impossível ser feliz sozinho.

 

Para quem quiser ler mais antes de ir ao cinema:

Dez curiosidades sobre o filme ‘Ela’, de Spike Jonze

Ela não fala de tecnologia, mas da dificuldade de criar intimidade

Crítica de Her: a primeira obra-prima do cinema em 2014


Fraturas

Fui visitar um amigo no hospital e fiquei impressionada com o conjunto de fraturas pós-acidente. Ficamos ali, falando destas coisas tragicômicas, em estar bem e estar mal. Enquanto ele me contava  das dores físicas, eu tentava explicar (e entender?) minhas fraturas emocionais. Nossas fraturas conversaram por horas, se deram muito bem, parece até que se conheciam há um tempão.

Quando estava indo embora, ele disse “valeu por ter vindo”. Olhei pra ele com minha típica expressão de quem julga a pouca emoção, de quem não fica à vontade perto de pessoas que expressam carinho com um “valeu”. Sorri.

Já fechando a porta, fiquei pensando se não é por isso que meu coração quebra tão fácil. Isso de não entender que existem diferentes tipos e expressões de sensibilidade.

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